“O barroco é também um pouco de drama, melancolia e tem tudo a ver com o som da gaita”

Sylvio Dias Ribas Neto


Cheguei por volta das 19h para bater um papo com Evaldo Isidoro de Oliveira, o Dim Neguinho, 28, um guia turístico excepcional em Ouro Preto. Conhecido por sua paixão pela cidade e com sua aguçada compreensão da história de Ouro Preto, ele compartilha detalhes fascinantes sobre os monumentos, igrejas, museus e ruas da cidade. Ele é capaz de transmitir não apenas fatos históricos, mas também histórias e anedotas interessantes que dão vida ao passado. Além de suas habilidades como guia turístico, Dim Neguinho é reconhecido como um talentoso músico de gaita de boca. Durante os passeios, ele aproveita os momentos apropriados para tocar algumas melodias, proporcionando uma experiência sensorial única aos visitantes. Se você tiver a oportunidade de fazer um passeio turístico em Ouro Preto com ele, certamente ficará encantado com sua habilidade em contar histórias e com seu talento musical. Ele é uma das figuras mais queridas da cidade e contribui para enriquecer a experiência dos visitantes que desejam conhecer e apreciar a história e a cultura de Ouro Preto.

Como surgiu esse talento para tocar gaita?
Então, mais ou menos uns nove, 10 anos atrás, eu conheci um amigo, o Rodnei, um dos meus melhores amigos. Ele é de Ouro Preto. Assim, a gente se conheceu nos barzinhos. Aí, uma vez o Rodinei estava soprando gaita, uma gaita de plástico, achei muito bonito o som. É um instrumento portátil, tem um som bonito, é pequenininho e tem um universo de possibilidades musicais. Aí, eu perguntei se ele me emprestava a gaita. Ele falou assim: “Dim, fica assoprando a gaita aí, enquanto isso vou resolver os negócios no banco aqui”. Quando ele retornou pra pegar a gaita, eu fui, entreguei a ele a gaita. Ele olhou pra gaita, viu aquela gaita toda babada, que eu tinha soprado a gaita dele. Ele falou: “Dim, pode ficar de presente pra você essa gaita aí e guarda com carinho”. Aí, pegou e deu a gaita pra mim de presente. Depois disso não larguei mais a gaita.

Você está com a mesma gaita que ele te deu ou é outra?
Estou com outra, porque a gaita que ele me deu era uma gaita de plástico, entendeu? E as gaitas de plástico são mais sensíveis, né? Estraga mais rápido. Não tenho ela mais não. Mas lembro que a primeira gaita que eu tive foi a de plástico que ele me deu. E sabe, depois disso, todo dia tocando, sabe? E as músicas que eu toco na gaita são músicas que eu pego de ouvido. Eu escuto a música várias vezes. Tem música que eu escuto até 20, 50, 100 vezes, até pegar ela na gaita, sabe? Eu consigo assimilar a melodia da música e passar pra gaita.

Os turistas gostam do seu som?
No início, eu era bem tímido de tocar em lugares públicos, onde passa gente. Porque, quando pessoas ficavam olhando eu tocando ou então filmando, eu ficava nervoso. Mas depois me acostumei com a presença das pessoas, percebi que a arte que eu faço acaba sendo uma terapia. E as pessoas gostam desse clima de Ouro Preto com sonzinho de gaita, sabe? Eu falo assim que sou um musicoterapeuta colonial.

Você acha que o seu som tem muito a ver com o barroco ouro-pretano?
Eu acho que sim. Esse som da gaita é melancólico, não é? Acho que se funde com o barroco, porque o barroco é isso. O barroco é também um pouco de drama, melancolia e eu acho que tem tudo a ver com o som da gaita, com a arquitetura barroca da cidade. Tem tudo a ver.

Você, por ser uma pessoa de cor negra, acha que merece mais credibilidade por parte das pessoas que aqui circulam em torno de Ouro Preto?
Eu acho. Nós, pretos, a gente tá 300 anos atrasado aqui no Brasil, né? Por conta do processo da escravidão, entendeu? Eu gosto de ir até o povo, sabe? Mostrar o meu talento, mostrar meu conhecimento, mostrar minha inteligência. Com relação à arte, sabe? Porque nossa inteligência foi sempre diminuída. Então, pra mim, isso é uma revolução, tá tocando na rua, mostrando meu trabalho, mostrando o som da gaita. E muitas vezes, quando eu tô tocando gaita, as pessoas conseguem escutar de dentro da igreja. Já aconteceu muitas vezes da pessoa chegar até mim e falar: “Nossa, é você que tá tocando? Eu imaginava que fosse outra pessoa”. Porque às vezes eu toco música clássica, mas eles acham que quem pode tocar música nobre é só branco, sabe? Então eu convivo com isso diariamente.

E qual é o tratamento das pessoas da cidade, das pessoas de cor mais clara, quando você mostra o seu som?
Eles gostam, porque a gaita sempre remete a algo do passado. Por exemplo, na rua onde eu moro, ali tem um senhorzinho que fica da janela me espiando passar. Sempre subo a ladeira tocando gaita, ele fala que lembra o pai dele, que tocava gaita assim. Acho que as pessoas de Ouro Preto estão começando a reconhecer mais meu talento artístico e respeitar mais. Mas, no início, muitas pessoas não gostavam não, sabe? Já fui xingado por causa do barulho, da gaita, por morador local, comerciante. Porque eu ficava sentado assim na esquina tocando, eles falavam que o som incomodava. Mas hoje o barulho virou melodia, né? Então as pessoas perceberam essa evolução musical através do meu esforço.

E essas pessoas, atualmente, como é que elas têm se portado perante o seu som? Essas pessoas que te xingavam antes.
Hoje admiram bastante. Principalmente depois que meu vídeo apareceu no programa do Faustão, na Band, que meu vídeo apareceu no programa do SBT, no programa do Toledo, sabe? Acho que ganhou mais visibilidade, as pessoas passaram a confiar, acreditar mais na minha arte, né? Depois que a mídia me expôs, entendeu? Acho que às vezes as pessoas só começam a valorizar a gente quando a mídia valoriza.

Qual é o seu público-alvo?
Meu público alvo com relação a gaita é o público mais idoso, sabe? Gaita é um instrumento clássico, né? Instrumento que lembra muito o avô da gente, o pai, o bisavô. Aí, o público é mais antigo assim. Quando eles passam, eu sinto que sempre se identificam com o som da gaita, Eu também gosto de tocar muito música clássica, de Beethoven, de Bach. Eu gosto de tocar músicas clássicas brasileiras também, como Milton Nascimento, Clube da Esquina, Alceu Valença. Então as pessoas mais velhas se identificam mais. Mas, quando passa assim grupos de pessoas mais jovens, eu costumo tocar músicas mais voltadas a eles, tipo músicas internacionais. Mas, enfim, meu público-alvo é o idoso, mas eu consigo agradar toda a classe.


Quais são as musicas de artistas negros que você gosta de tocar?
Eu gosto muito das músicas de Milton Nascimento, tenho tocado Louis Armstrong. Stevie Wonder, também gosto das músicas dele na gaita, entendeu?

Qual a mensagem que você deixa para as pessoas que estão querendo aprender gaita e para as que estão começando agora?
Primeiro, tenha paixão. Acho que paixão é a força motriz. E antes de tocar pras pessoas, procure tocar primeiro o coração das pessoas, colocando emoção na música, sabe? Eu não tenho muito conhecimento teórico quanto à música, sabe? Mas eu coloco emoção, toco com o coração. Então toque com o coração primeiro, depois você toca a gaita.

Você já tocou fora de Ouro Preto em algum evento?
Ah, sim, já toquei em Brumadinho, para uns turistas que me viram tocando aqui em Ouro Preto, me chamaram pra tocar no casamento deles. Já toquei em Belo Horizonte para turistas também. O lugar mais longe foi em Guaratinguetá, São Paulo, onde troquei para uns militares clientes de amigos meu, que me convidaram pro casamento deles. E também, quando fui pra África do Sul, eu toquei bastante lá, na região de Cidade do Cabo Inclusive, os estrangeiros de lá adoraram. Então é isso, eu levo a arte pro mundo e vou onde o povo está.

Veja mais fotos de Dim Neguinho: Álbum flickr




Sylvio Netto, 54, acabou de concluir o curso de Jornalismo na Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Apaixonado pela arte da fotografia, fez parte da equipe de voluntários de Imprensa dos Jogos Pan e Parapan – Americanos sediados no Rio em 2007. Atualmente trabalha com Fotografia e Assessoria e foi editor de vídeo do projeto Caixa Preta – Laboratório de Criação Audiovisual da UFOP.

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