“Minha entrada na associação foi um consolo, um amparo”

Presidente da Associação Lareira de Nazaré, Silvania Mendes conversa sobre sua relação com o trabalho voluntário

Sofia Mosqueira Seixas

Técnica em Contabilidade, Silvania Mendes Pereira, uma amante do conhecimento, também cursou História (pela Universidade Federal de Ouro Preto), Turismo (pelo Instituto Federal de Minas Gerais) e Psicologia Relacional (pela Faculdade Dom Luciano Mendes). Natural de Minas Gerais, tem 66 anos, é aposentada, e hoje ocupa o cargo da presidência na Associação Lareira de Nazaré. Fundado em 1968, o grupo formado apenas por mulheres, entre elas, costureiras e bordadeiras, dedica o trabalho voluntário ao acolhimento e amparo da comunidade de Ouro Preto. 

Em entrevista ao Lamparina, Silvania conversa sobre sua relação com a Associação Lareira e os acontecimentos de sua vida que a fizeram se envolver com ações sociais, além de um pouco mais sobre o funcionamento de uma organização que continua lutando na defesa dos direitos sociais há mais de 50 anos. 

Produtos expostos pela Associação Lareira de Nazaré na Casa dos Contos. Foto: Sofia Mosqueira

Primeiramente, queria que você falasse sobre você. Quem é Silvânia?

Eu nem me conheço, você acredita? Eu, no meu coração, gosto muito do ser humano, gosto muito de estar conversando, de estar vendo o lado da outra pessoa. Eu tenho essa vontade de ajudar também, sabe? Eu entrei na Associação Lareira já tem mais ou menos 27 anos, fiquei na tesouraria 20 anos direto, então hoje, sendo presidente é uma oportunidade de estar saindo da tesouraria. Todo cargo nosso, a gente não pode se recandidatar, mas a gente não acha ninguém que assuma a tesouraria, porque é muito detalhezinho e uma responsabilidade muito grande, a gente vai ficando sobrecarregado. E é uma oportunidade de outras pessoas conhecerem, tem que dar oportunidade para todo mundo passar por aquilo. E, porque eu não posso me candidatar à presidência de novo, então vou ficar em outra área ou não vou ter cargo nenhum, mas vou continuar na Associação Lareira porque acho muito importante esse trabalho. Eu já estou acostumada porque eu sou casada há quase 40 anos, então eu morei em Rondônia, dentro da mata, morei oito anos em acampamento. Lá a gente aprendeu a trabalhar com a comunidade, porque é carente de várias coisas. Como a gente morava numa área de staff, que era uma área vip, eu e meu marido tínhamos um privilégio de estar morando nessa área, de ter uma autonomia. E a gente percebia que as pessoas de lá, do Incra [Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária], da região todinha ali, que ficava dentro da empresa, nós víamos muita carência de conversa, de oportunidade para as crianças também, de ter alguma atividade. Eu e meu marido começamos a mexer com essa coisa, eu falei assim: “Vamos trabalhar com as crianças primeiro, daqui da comunidade”.  Só que a gente tinha tudo, não faltava nada, a gente morava dentro da mata, mas tinha tudo de bom e do melhor, vinha tudo, a tecnologia, tudo de São Paulo pra gente. Começamos, então, a trabalhar com essas crianças, meu marido começou a fazer um time de futebol, um time de basquete para essas crianças, sabe? Quando a gente vinha aqui para Minas a gente comprava essas coisas e levava para elas. Teve uma época que meu marido adoeceu lá, mas conseguiu se curar do diagnóstico, aí nós decidimos, em agradecimento a Deus também, fundar uma igreja católica, porque a igreja é um lugar que acolhe e as pessoas se unem. Começamos a dar o catecismo para as crianças, e tínhamos também essas atividades de interação com as crianças, através da igreja, com permissão do bispo de Porto Velho. Começamos a trabalhar nesse lado voluntário, essa coisa de ajudar a comunidade, através desse trabalho nosso, de ouvir as pessoas. 

Isso foi em que ano? 

Foi em 1985. Começamos, então, a fazer esse trabalho de ouvir as pessoas. Lá eu também trabalhei na empresa, trabalhava como secretária, trabalhei no setor financeiro uma vez, em vários setores. Lá eu comecei a ter essa visão voluntária. E eu tenho 66 anos já. Tenho dois filhos, meu marido é professor da Escola de Minas. Ele também tem um projeto, que também é voluntário, na Ufop, para ajudar toda a comunidade, já tem 23 anos, chama Arte da Cantaria, ele tenta acolher os alunos dessa mesma forma que a gente acolhe. 

Qual a sua relação com a arte, em especial os bordados e trabalhos manuais? Você sempre bordou?

Eu tenho noção de muita coisa, faço alguma coisinha, mas eu não sou expert nesses negócios. Faço de tudo e não faço nada ao mesmo tempo. Não tenho aquela habilidade tão grande. Mas tudo que a gente dedica com muita atenção, a gente faz com perfeição, né? Então, eu faço alguma coisinha de crochê, de bordado, essas coisas tudinho aqui em casa, tudo é eu que faço, almofadinhas, essas coisas. Tenho uma noção de costura também, mas tudo aqui para dentro de casa mesmo. Quando eu estava na tesouraria, não tinha tempo para poder dedicar tanto, faço alguma coisinha ou outra, mas a gente não tem tempo, e também não tenho ninguém que me ajuda em casa, eu que faço todo o serviço de casa. Saindo agora da tesouraria, de repente vai dar um tempinho maior para eu me dedicar mais a esse bordado, mas eu faço, se precisar de fazer, eu faço. 

Sobre a Associação Lareira de Nazaré, o que é a associação, como funciona?

A Associação Lareira foi fundada em 21 de fevereiro de 1968, por uma senhora aqui de Ouro Preto que se chamava Dona Lucy Queiroz.

O nome de “Lareira” é como se fosse, assim, para agasalhar, para acolher, sabe? É um acolhimento.

Na época, começou com uma confecção de enxovalzinho de recém-nascido para fazer doação para comunidade carente, as mães carentes. Ela fundou com esse intuito, e reuniu as senhoras de Ouro Preto, só mulher, para poder fazer esse trabalho. Elas tinham o bazar da pechincha, recebiam roupas das pessoas, das amigas, que não tá usando mais, e faziam um bazar para arrecadar um dinheiro. Assim elas começaram a reunir as pessoas para fazer esse tipo de trabalho e com esse dinheirinho elas doavam, compravam o tecido e confeccionavam o enxovalzinho. Ela [Dona Lucy] faleceu agora, no dia 27 de julho de 2023, que foi o dia que eu tomei posse como presidente. Dona Lucy reunia as pessoas e não tinha sede própria, tinha outras associadas junto com ela, foi uma equipe. É muito bonito o trabalho da Associação Lareira porque foi uma equipe das mulheres que estavam dispostas a fazer doação. Elas doam, a gente doa trabalho da gente, a gente paga uma mensalidade, e tem um estatuto, bem simplório, mas que na época era legal. Então, essas senhoras começaram a ficar pedindo ajuda da prefeitura, do estado, de algum político e conseguiram, na época, ganhar um terreno. Começaram a construir a sede própria e vieram outras pessoas agregando junto a essa equipe. Hoje a gente tem uma sede, a sede própria, um andar de cima que a gente aluga, e a parte de baixo que a gente reúne para fazer os bordados. Agora nós começamos a comprar enxovalzinho já, não confeccionar, porque já tá faltando gente para costurar. E como que a gente compra esse material? Através do aluguel e através da venda do bazar da pechincha, que a gente vende bem baratinho e roupas boas também. Doamos esse enxovalzinho para o hospital, que sabe, mais ou menos, quem é neném lá e é carente, que às vezes não tem nada. E, através disso, a gente faz uns bordados também. A gente vende todo esse material pra ter recurso para fazer doação. Tudo que entra na Associação Lareira, entra como doação e sai como doação. A gente não retém dinheiro próprio. Dentro do estatuto a gente não paga ninguém para poder trabalhar, sabe? Tudo é voluntário, nosso trabalho é voluntário. É um trabalho bonito porque nunca nos faltou nada, e é só mulher que trabalha, atualmente são 20 associados que a gente tem, mas já teve um momento que teve três associadas, um outro momento teve 30. Vai variando. A pessoa que é voluntária, a doação é do coração. Eu penso assim: a doação vem do coração, então você não obriga ninguém a doar, nem seu tempo. Tinha essa Cléo, a Cléo sempre falava que a lareira é abençoada, e é mesmo, porque tudo que tudo que a gente faz é abençoado, tudo multiplica. Todas nós nos dedicamos a alguma coisa, se uma não sabe bordar, a outra vai fazer alguma outra coisa para poder ajudar. Com esse dinheiro que arrecadamos, nós fazemos doação, a gente ajuda muito o hospital, às vezes as coisas que eles precisam. O Lar São Vicente de Paulo também, o asilo aqui de Ouro Preto. Tem o grupo Nata, que a gente sempre ajudou, o núcleo de apoio às pessoas que usam droga, alcoólatra, estamos sempre ajudando. Também ajudamos com cestas básicas no Centro de Promoção Humana. Agora a gente está fazendo uma doação para o grupo Semente de Luz, para dar um kit para as mães que ganham neném, que às vezes precisam de um desodorante, um absorvente. Às vezes ajudamos moradores de rua, doamos para o pessoal carcerário. Então assim, qualquer coisa que precise, se estiver dentro da nossa condição, a gente ajuda, é esse trabalho que a gente faz com a comunidade.

Além disso tudo, acho que o mais importante é esse acolhimento que nós temos uma com a outra dentro da Associação Lareira. Cada uma tem o seu jeitinho, o seu modo de pensar, cada uma passa uma dificuldade. Mas esse acolhimento que eu tenho das minhas amigas lá da associação é um conforto que a gente tem no coração. 

Venda de produtos na Casa dos Contos para arrecadação de recursos destinados à doação. Foto: Sofia Mosqueira

Falando mais sobre a sua relação com a associação. Como foi o processo de integração na Associação Lareira? Como você descobriu e decidiu entrar no grupo?

Há 24 anos, quando eu já estava aqui em Ouro Preto, a minha filha estava com seis aninhos e ela teve um problema de saúde sério, teve púrpura trombocitopênica autoimune. A partir do momento que a gente ficou sabendo o que era, ficamos correndo atrás do tratamento dela. Aqui em Ouro Preto não tinha hematologista, não tinha um especialista, então a gente ia toda semana para Belo Horizonte, isso foram dois anos. Toda semana tinha que fazer um monte de exame e essa menina não podia fazer nada porque podia dar hemorragia, então a minha atenção ficou dobrada com ela, aquele cuidado, eu não fazia nada extra, para poder cuidar dela. Quando chegou no final do ano, o remédio que ela estava tomando não estava resolvendo. O médico disse que ela ia ter que tomar outro remédio e que talvez ela ficasse curada. Quando nós fomos repetir o exame, no dia do resultado, piorou tudinho, o remédio não fez efeito para ela e o médico falou que ela teria que ir para o bloco cirúrgico. Nesse intervalo meu cunhado descobriu um câncer no intestino e ia ter que fazer cirurgia. No dia 9, minha filha ia internar e meu cunhado fez cirurgia no intestino, deu embolia pulmonar, e morreu. Ele faleceu no Hospital das Clínicas, enquanto minha filha estava no centro cirúrgico. Nossa situação ficou toda abalada, foi muito pesado. Quando minha filha foi para o bloco cirúrgico, ela passou mal, quase morreu na cirurgia. Quando ela saiu eu quase morri, mais aquela tristeza do meu cunhado, passamos por uma situação muito difícil. Isso foi em dezembro, em janeiro eu comecei a me sentir mal, aí já estava tudo bem com a menina. Mas eu fiquei passando mal. Se um dos dois espirrasse, eu começava a querer desmaiar, eu passava mal mesmo, não saía do lugar, as pernas ficavam paralisadas. Minha menstruação foi embora, não estava entendendo nada, emagreci muito e chorava demais por causa do meu cunhado, dessa situação que a gente estava vivendo. Aí uma prima do meu marido, que era da associação, me convidou, ela falou assim: “Silvania, vamos para a associação, você pode aprender a fazer alguma coisa, pode bordar”, então ela me levou para lá. Por isso a associação, na época, me acolheu, sabe? Eu tenho um amor pela associação por causa disso também, porque às vezes a gente tem alguma divergência, mas eu ainda tenho aquele carinho. E eu gostaria que todas nós sentíssemos isso na associação. Minha entrada foi desse jeito, foi um consolo um, um amparo. Geralmente, quem entra e fica na associação é porque se sente acolhido.

Atualmente, você é presidente da Associação Lareira. Quais são suas funções neste cargo? Qual o papel que você exerce?

Eu acho que a intenção de todos nós é sempre procurar fazer as coisas da melhor maneira possível, procurar recursos, incentivar as pessoas a trabalharem, as que estão na associação, a bordar com dedicação, a trabalhar no bazar. A minha intenção seria essa. Acolher outras instituições dentro da associação, às vezes tem alguma associação que precisa de algum apoio, então a gente está sempre ajudando. Eu acho que o papel da presidente é isso, é tentar também fazer, entre nós, ter uma harmonia, ter empatia uma com a outra. Eu estou agora como presidente, mas amanhã eu posso não estar. Temos que ter esse apoio, para buscar recursos, para buscar tolerância, para enxergar o outro fora dali também, na comunidade. Eu sou um pouquinho cri-cri porque não gosto de desentendimento, eu gosto de diálogo, mas hoje está meio difícil para dialogar, porque às vezes a gente fala com uma determinação que pode parecer que a gente está sendo exigente, mas às vezes não é, e você tem um estatuto a cumprir. Então você tem a sua função como presidente, tem que cumprir aquela função. A outra como tesoureira, a mesma coisa, a secretária, do mesmo jeito. Tem que estar sempre um ajudando o outro. A minha intenção é essa, eu quero sempre compartilhar a minha determinação da melhor maneira possível. Sempre buscar recursos, trabalhar mais para o outro. A intenção é essa, como presidente.

Para encerrar, como as pessoas que não participam da associação podem contribuir?

Então, eu achava que a comunidade em si devia estar mais interligada numa ajuda sem ser política, tentar ajudar sem ser político. Por voluntário mesmo, do coração, ajudar de coração. Porque eu acho que quando envolve política, quando você fica falando: “Eu não vou fazer isso não, porque isso é obrigação da prefeitura”, aí eu já acho que já começa a sair aquela coisa de voluntário, perde aquela coisa de ajudar o próximo. É isso que eu penso, as pessoas podiam se ajudar assim.

Bordado exposto na Casa dos Contos. Foto: Sofia Mosqueira

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