“Tenho o choro como minha principal escola musical, é nela que opero minha resistência como músico preto, ouro-pretano, que mantém uma manifestação, um patrimônio que é secular”

Nascido e criado no Bairro Santa Cruz, na periferia de Ouro Preto, Diovane Inácio é músico e historiador formado pela Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop). Ele integra diversos grupos musicais, como o Trio Choro Negro, o Samba na Madeira e o Sambaião. Diovane nos conta um pouco sobre como aconteceu seu envolvimento com a música e como a paixão pelo choro, gênero musical que por muitos é considerado a primeira música tipicamente urbana brasileira, mudou os rumos de sua vida.

Por: Paulo Henrique Sales

De onde vem seu gosto pela música?

Meu gosto pela música vem desde muito novo. Sempre gostei de ouvir música, tive alguns equipamentos de áudio quando era mais novo, apesar do acesso à tecnologia ser muito difícil durante a infância, minha mãe, que era sacoleira de roupas, ia muito a Belo Horizonte e para outros lugares buscar roupas para revender, e tinha acesso a esses mercados que vendiam esses produtos em paralelo, né. Um discman, um aparelho MP3… por isso sempre tive um gosto por escutar. E meu pai sempre teve um gosto musical muito voltado para o samba, para o choro, e isso me influenciou desde pequeno a estar sempre escutando música.

Então a música faz parte da sua vida desde a infância? 

Sim. E mais velho, durante a minha graduação em História, no meio do curso, eu começava a frequentar a noite de Ouro Preto, via vários artistas tocando e um deles me chamou muita atenção. O Kastora, com um modo autêntico e bem original de tocar, usava um pedal de loop onde ele gravava as percussões, fazia a harmonia e cantava. Ele era uma banda de uma pessoa só. E esse foi o meu primeiro olhar, assim, que me despertou o desejo de adquirir um instrumento de percussão. Aí, um amigo meu, Hugo Coelho, me emprestou um cajón e eu o levava para os bares onde eu trabalhava, e comecei a tocar com alguns músicos que se apresentavam nesses bares. Eu desfilava em blocos de carnaval, cheguei a tocar em escolas de samba e vi que levava jeito. Depois disso eu comprei um cajón, ganhei um pandeiro… isso é recente, coisa de 7 ou 8 anos atrás. A partir disso eu comecei a me interessar ainda mais e me dedicar inteiramente à música. Eu quase abandonei a graduação, mas consegui me formar em História. Só que eu vi que a música já havia tomado parte de mim e virou minha profissão.

Você é apaixonado pelo choro. Essa paixão vem desde muito novo?

Desde pequeno eu tenho essa paixão pelo choro, eu fui ambientado pelo choro, né? Passei muito tempo sem escutar, mas quando voltei a ver e frequentar rodas de choro, eu vi que esse ritmo já estava internalizado em mim. Eu escutava e “pô, já escutei isso”, me lembrava que era algo da minha infância, sabe?

O Trio Choro Negro é o único grupo de choro formado por artistas negros ouro-pretanos e você é um dos integrantes. Como o grupo surgiu?

O Trio Choro Negro é um projeto que começou com o Danilo Henrique Campos, que é nosso violonista, tinha outro solista que era o Eduardo Magalhães e outros percussionistas que colaboravam com o trio. Depois que o Eduardo foi embora, o trio ficou meio parado. Aí, eu e o Tiago Couto, a gente integrou esse projeto junto com o Danilo. E aí veio o Trio Choro Negro e, por a gente ser os únicos pretos de Ouro Preto a fazer esse movimento, o grupo ficou muito forte. E a nossa paixão pelo choro vem também porque, além de ser um ritmo muito lindo e gostoso de escutar, ele mexe com a formação do músico. A gente fala que todo músico que toca choro consegue desenvolver a coisa técnica da música mesmo, né? A música como ciência, se você se ancora no choro, você desenvolve esse lado mais “formal” da música de uma forma muito legal e bem intensa.

E além de uma banda vocês também são um grupo de pesquisa, né?

Sim, a gente gosta de entender a história das linguagens rítmicas, entender qual é a presença do preto na criação dessas linguagens, que é muito importante, né? O choro vem de uma certa musicalidade europeia, que é a polca, mas o swing e o balanço, a linguagem da dança, um corpo que fala é o corpo preto. E a gente pesquisa muito isso, sabe? Como essas culturas rítmicas de uma costa da África chegam aqui no Brasil como ferramenta de resistência para os pretos que foram escravizados aqui, conseguissem manter uma linguagem cultural. Eles tinham a música e a dança como importantes ferramentas para isso. E a gente sempre pesquisa sobre isso.

Pensando o choro como instrumento de resistência cultural, o que ele representa e quão importante ele é para você?

Então, o próprio ato de resistir é o que também faz a gente insistir como músico, artista e profissional. Como tenho o choro como minha principal escola musical, é nela que opero minha resistência como músico preto, ouro-pretano, que mantém uma manifestação, um patrimônio que é secular. Através desse saber, eu opero em outras diversas linguagens musicais.

Quais são as suas maiores inspirações?

São grandes percussionistas, grandes artistas do choro. O percussionista tem aqui o Djalma Corrêa, ouro-pretano. E eu falo que minhas maiores inspirações, para além desses clássicos, são o pessoal que está aqui comigo, os músicos que eu acompanho. O Tiago Couto, que toca há mais de 30 anos profissionalmente, o próprio Danilo tem uma história muito forte de formação musical. São grandes mestres e o que diferencia eles de grandes nomes de sucesso é a fama, porque a técnica e a experiência musical dessa galera aqui de Ouro Preto tem o mesmo nível de grandes famosos. Acho que eles são minhas maiores inspirações, junto do Kastora, também. Ouro Preto é recheada de mestres da música e da arte.

Como as cidades de Ouro Preto e Mariana e a sua formação acadêmica refletem na sua arte?

Ela é facilitadora na hora de construir essas pesquisas. E como a música é ciência, a formação acadêmica ajuda como método científico mesmo para estudar e desenvolver música. Já o cenário de Ouro Preto (MG) e Mariana (MG), é recheado de bons artistas e foi o cenário que me acolheu. A Érika Curtiss, por exemplo, é uma cantora ouro-pretana que atua muito em Mariana. Eu sempre vi ela tocar com os seus músicos. É uma referência pra mim e ela me deu uma oportunidade de acompanhar o Samba de Sobra.

Qual a sua visão sobre o cenário cultural de Ouro Preto e Mariana?

Muito me alegra por ser um cenário muito rico, com diversos artistas muito bons mesmo. Inspiradores, mas às vezes tenho certas frustrações com a questão de ser valorizado, das pessoas reconhecerem a nossa arte. Eu falo que é muito difícil para nós que, por exemplo, somos ouro-pretanos e vivemos numa cidade que tem essa população flutuante universitária, muitas vezes a nossa arte tem que atingir essa população também. Mas essa população, às vezes, se fecha com alguns artistas e isso silencia um pouco os artistas que estão nos periféricos, o que acaba sendo problemático. Eu acho que se a gente tem uma expectativa de mudança, seria essa: dar mais valor, mais visibilidade, gerar mais trabalho para os artistas periféricos locais.

Qual a importância da música na sua vida?

Ela mudou completamente a minha forma de viver, de ver a vida como arte e viver disso. Eu tinha outra perspectiva de vida, que era ter uma formação que eu nem sabia ao certo se era o que eu queria e iria trabalhar como professor, coisa que cheguei a fazer. Mas me encontrei na música e hoje eu projeto isso para o futuro também. É algo que eu não quero abrir mão de forma alguma, estar sempre tentando conseguir viver da melhor maneira com a música, como o meu trabalho mesmo.

E como foi essa tomada de decisão de deixar a carreira de professor para se dedicar inteiramente à música?

Acho que eu tive uma dedicação tão intensa com a música e com outros parceiros que me acolheram, me mostraram esse potencial que às vezes estava ali enrustido e eu nem sabia. Acho que foi aí que eu notei e depois, como dizem, “daqui pra frente, só pra frente”, é isso.

O que a música, sobretudo o choro, representa para você?

Representa uma escola de vida. Eu sempre gostei de uma vida boêmia, sempre trabalhei em ambientes noturnos, em bares, trabalhei como técnico de som e o choro, a música veio como uma forma de organizar essa vida noturna que muitas vezes também pode ser perdição. Mas quando você faz isso com foco, que foi o meu caso, você entende isso como trabalho. E eu tenho me dedicado a fazer com que as pessoas também reconheçam que esse é meu trabalho, essa é a minha forma de viver. 

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