“Minha família nos educou assim, pra servir Mariana”

Lavínia Torres

Os sinos marianenses e seus toques despertam curiosidade e são símbolos de tradição. Tradição  que quase se perdeu, e teve de ser novamente enraizada e ter os costumes retomados. É aí que entra Hebe Maria Rôla Santos, 87. Ela é professora emérita da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), pesquisadora e dedica a vida a Mariana. Dona Hebe, como é conhecida, vem de uma família de artistas (músicos, atores e atrizes), que sempre prezou pela memória da cidade e, assim, sempre preservou o patrimônio. A simpática senhora conta que o que a despertou para a linguagem dos sinos foi um ocorrido em uma de suas aulas no Instituto de Ciências Humanas e Sociais, o ICHS, da UFOP, no começo dos anos 80. Ela mostra orgulhosa à reportagem sua coleção de sinos, vindos de vários lugares do Brasil e do mundo. Também nos conta um pouco sobre seus livros, pesquisas sobre os sinos marianenses e seus toques.

 

 

Lamparina: O que fez com que a senhora se despertasse para a importância do toque dos sinos?

Hebe Rôla:   Minha família é uma famĺia de músicos, atores e atrizes. É uma família que sempre prezou pela memória de Mariana. Eu fui criada nesse ambiente e nele a gente sempre preservou o patrimônio. Então, um dia, eu estava dando uma aula para os alunos do quarto período no ICHS [Instituto de Ciências Humanas e Sociais], e estava fazendo uma comparação entre gramáticas, e falando sobre o objeto direto pleonástico, um objeto muito difícil. Havia uma frase de uma poesia que dizia “os sinos, já não há quem os toque”. Então eu parei e refleti que era verdade. Em Mariana os sinos quase não tocavam mais. Isso foi em 1982, e foi aí que eu comecei a pesquisar os sinos.

Então eu fiz um trabalho chamado “Piques e repiques – a linguagem dos sinos em Mariana e Ouro Preto”. Porém, uma ex-aluna de uma oficina minha colocou o mesmo título na revista de sinos de Diamantina. Aí, eu resolvi mudar para “Toques e repiques – a linguagem dos sinos em Mariana e Ouro Preto”

 

 

Lamparina: Nós costumamos ouvir em certas ocasiões diferentes batidas de sinos. Por que a diferença? E por que isso acontece?

HR: Eles não são tão diferentes, na verdade, a gente tava tendo um problema com os sineiros, tanto que eu consegui que dois deles fossem fazer um curso; pois alguns estavam inovando. A linguagem dos sinos é como uma gramática: você pode usar, mas você não vai mudar a gramática. Então é uma convenção.  Se é uma convenção você não pode inventar. Alguns sineiros estavam mudando [os toques] e outros, estavam indo para as torres sem saber. É um problema sério, porque os toques são códigos. Esse código vale para o mundo todo, embora tenha algumas diferenças em algumas igrejas e de um país para outro também. E aqui em Mariana há um código que em toda a vida foi respeitado.

Essa sonoridade dos sinos, [acreditava-se que] era tomada pela quantidade de ouro que os sinos tinham. Pelas pesquisas que fiz, considerei isso um engano, porque na realidade, quando eles fundiam os sinos, eles faziam um fosso, pois o sino fica enterrado no chão até secar. Então eles faziam um fosso, e colocavam o sino, o protótipo do sino, e abriam um outro buraco ao lado. Haviam os padrinhos dos sinos e, para que o sino ficasse com a sonoridade mais bonita, eles tiravam seus colares e correntes de ouro. Os homens tiravam seus relógios e jogavam. Só que não caía no sino que estava sendo fundido, caía no fosso ao lado. Os professores de metalurgia de Ouro Preto fundiram uma vez um sino para mim e nós discutimos essa questão do ouro. Eles falaram que já pesquisaram vários sinos em Ouro Preto e não encontraram ouro nenhum.

 

Lamparina: A senhora poderia nos falar um pouco sobre seu livro, o “Bem-te-sinos”?

HR: Eu considero que a criança, aprendendo, ela ensina o adulto. Eu trabalho muito com criança, então pensei: A única coisa que eu posso fazer é escrever um livro que não seja cansativo. Que conte uma história bem lendária mesmo, uma ficção, para as crianças gostarem dos sinos. Então eu escrevi uma história sobre um pássaro que queria ser sino – eu tenho até algumas almofadas bordadas com esse modelo. Então ele fica no ninho com os pais e os pais o ensinam a cantar. Os outros filhotes aprendem e ele fica virado pro lado, não se interessa. Ele ficava ouvindo os sinos, e [dizia] “Que passarinho é esse que canta tão alto que todo mundo escuta?”. E ficou prestando atenção. Um dia, ele foge e vai pra torre sineira do São Francisco, e ficou ouvindo. Aí, ele tabula uma conversa com os sinos, que contam a ele como o sino é bento, como ele sobe para os altares. Então aí, ele vira o bem-te-sino, porque o canto dele era como o toque dos sinos. E Alphonsus de Guimarães fala uma coisa muito bonita a respeito dos sinos, em um poema que se chama “A catedral”. Ele fala dos sinos acompanhando a vida da pessoa, em uma interpretação simples. Ele fala que os sinos acompanham a vida do nascimento até a morte. Então, a adolescência, a juventude, a vida adulta, e depois a senilidade, a velhice.

 

Lamparina: E a senhora conviveu com isso, né? Por sempre morar perto da igreja.

HR: O meu pai era espírita, então a gente não frequentava a igreja, mas a gente era encantado com os toques, porque os toques eram muito bonitos. Tem o repique  e o dobre. No repique, o sino fica parado, e os sineiros vão manipulando o badalo. Por exemplo, o toque para chamar pra missas, são poucas badaladas, depois dão uma maior quantidade de badaladas. Depois, eles tocam também para morte. Hoje, eles quase não tocam pra morte, tocam mais pra morte de padre e bispo, essas coisas.

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Almofadas bordadas com a temática do livro Bem-te-sinos, feitas por Marlene Maia.

 

Lamparina: E qual era a finalidade dos sinos?

HR: Os sinos não serviram apenas pra igreja. Eles serviam até para evitar a transmissão de doenças. No Rio de Janeiro, quando chegavam os navios, com os negros doentes com peste, os sinos tocavam pra avisar aos brasileiros pra não chegar ao cais, que haviam pessoas com peste lá. Nesse caso ele faz até profilaxia, né? Eles também eram usados nas fábricas, nas escolas, e até pouco tempo tinham esses sinos na escola.

Outra coisa muito importante dos sinos é que eles para irem para a igreja, eles são bentos. Então o arcebispo, bispo ou algum padre encarregado por ele, que vai fazer essa benzeção. Primeiro, antes do sino chegar às torres sineiras, ele vai ser lavado com água benta, depois enxuto, e, depois, o bispo ou arcebispo fazem quatro cruzinhas na parte interna  da boca e oito na parte externa; com os santos óleos, que é também um sacramento da igreja, usado na Crisma. O sino é batizado e crismado e esses óleos também são os óleos da extrema unção. Então ele recebe todos os óleos e bênçãos antes de subir. Eles não podem tocar pra qualquer pessoa ou qualquer festa, eles têm que tocar exclusivamente para fortalecer a liturgia da igreja.

 

Lamparina: Então se a gente escuta eles tocarem em algum dia é por causa de um evento comemorativo da igreja?

HR: Isso, eles não tocam para pessoas físicas. Tanto que, no Caraça, tinha um padre estudioso dos sinos, padre Tobias Zico, e esse padre se revoltou porque Itamar Franco, quando estava na presidência, tocou o sino para chamar seus correligionários para uma reunião. O padre Tobias Zico até publicou [que era] um desrespeito a um artigo que era bento exclusivamente para tocar os atos da igreja.

Antigamente, tinham muito mais toques, né? Tinha um toque para batizado, tinha um toque para Crisma, que eram repiques. Tinha um toque horrível, era um toque da agonia. Quando alguém estava agonizando, se fosse católico, o padre saía da igreja com a extrema unção pra ele, e a hóstia pra ele comungar. E enquanto o padre estivesse na igreja ou na casa do moribundo, o sino ficava tocando, pra mostrar ao povo que todo mundo tem que viver, esperando a hora da morte. Então [deve-se] ter uma vida boa e séria, pois qualquer hora a gente morre.

 

Lamparina: E agora esses sinos são tocados mais como forma de comemoração ou como forma de aviso também?

HR: Eles avisam. A missa chama Entrada e Entradinha. A Entrada são badaladas, e a Entradinha são badaladas mais rápidas, em um som mais agudo. Eles tocam também para consagração de bispos, para morte de padres e bispos e para alguns leigos que têm muito valor na igreja. Então, como eu já falei, eles tocam três sinais para homem e dois para mulher; e quando morre criança de até 7 anos eles repicam. Porque a criança de até 7 anos não tem pecado. E então repicam porque é um anjo que vai para o céu. Você imagine, uma criança morrendo, a família triste, e os sinos tocando.

Hoje nós temos as chamadas pras missas, para as novenas e trezenas e aviso de procissão. Durante o trajeto que o santo está fazendo na rua, o sino é tocado para comemorar essa saída do santo. Há um sino que é muito triste, que são os últimos toques antes da Semana Santa. E na semana santa, quando Cristo morre, na agonia e morte de Cristo, eles são substituídos pelas matracas.

 

Lamparina: A senhora considera que a sua vida ou grande parte dela foi nesses projetos, nessa tradição marianense?

HR: Como eu disse, minha família nos educou assim, pra servir Mariana; não só para usufruir. Tanto que o meu trabalho é todo voluntário. Aqui na Casa [Casa da Cultura], todo o trabalho – o movimento Renovador, a escola de violão – é voluntário. O movimento Renovador ensina a bordar, nós ensinamos Língua, Literatura e Português, ensinamos Leitura e Produção de textos, tudo gratuito. Ensinamos tanto nas escolas quanto aqui. E nós temos um projeto aqui, que é de extensão da UFOP, que se chama “Floresça Mariana, uma flor em cada janela, um livro em cada mão”. Nós trabalhamos também com a cultura do solo, porque houve uma época que Mariana passou fome, quando rareou o ouro, então a gente ensina as crianças a plantar para cuidar, saber respeitar o solo.

O movimento Renovador colabora com o poder da mulher, mostra que a mulher tem poder; elas vem aqui e aprendem a bordar e a fazer crochê para ganharem a própria vida. Esses bordados acontecem no sábado e na quinta-feira, e há uma aluna voluntária do ICHS, a Dalila, que nos ajuda e ensina bordado no sábado.

Nós temos também a Academia Infanto Juvenil. No nosso último evento, falamos sobre Manuel da Costa Ataíde. Agora estamos fazendo [com as crianças] um calendário com as lendas de Mariana. As crianças vêm toda terça-feira às 17h30.

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Placa localizada na casa de Dona Hebe Rôla, a reconhecendo pela sua importância no contexto da cidade.

 

Lamparina: E com esse projeto elas vão conhecendo mais um pouco da história de Mariana…

HR: Elas aprendem tudo. Sabem muito sobre Alphonsus de Guimarães, podem dar aula sobre ele. E, aqui nesta casa, nós trabalhamos sobre a diversificação da economia. E até trabalhamos com o pessoal de Bento Rodrigues, mas agora eles pararam de vir, depois que se mudaram pras casas, que são longe daqui. E aqui foram criadas as associações de bairro e a federação das associações de bairro.

image3 Ayla, aluna da Academia de Letras.

No final da entrevista, o Lamparina conversou com alunos da Academia Marianense Infantojuvenil de Letras, Ciências e Artes, que não pouparam elogio ao trabalho de Dona Hebe. Com o projeto, eles aprendem sobre a história de Mariana, aprendem poesia, a escrever melhor, etc

“ Eu escrevia muito mal, e a dona Hebe me ajudou a escrever melhor, e tinha muito medo de falar em público, e agora falo muito bem”, disse a aluna Ayla, 10, recitou “Madrigal”, de Alphonsus de Guimarães., que já frequenta a Academia há dois anos.

“Aprendi a formular textos, a falar em público. Agradeço muito à Dona Hebe, que sempre sabe o que passar pra gente”, diz Paulo Vieira, 17, aluno da Academia.

 

Lavínia Torres
 
 

Lavínia tem 17 anos, e é natural de Carangola. Adora perambular pela Netflix e chorar com filmes adolescentes clichês, e não dispensa uma saídinha pra lanchar. Pisciana, odeia a frase “você que sabe”, e qualquer tipo de exercício físico.

 

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